Capítulo de amostra
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A verdade é um valor universal. Isso significa que não houve nem provavelmente haverá na história alguém que declarasse abertamente preferir a mentira à verdade, a infidelidade à fidelidade, o falso ao legítimo. É uma daquelas coisas que o escritor anglicano C.S. Lewis incluiria na “Lei da Natureza Humana”. Defender a verdade não chega a ser uma causa muito distintiva ― justamente porque não se espera que apareça alguém para debater em favor do outro lado. Assim, defender a verdade, enquanto conceito, não quer dizer muita coisa. A questão é conhecer a verdade. Ou, como perguntou Pôncio Pilatos durante o interrogatório que condenou Jesus à cruz: “Que é a verdade?” (Jo 18.38) Um versículo bíblico entrou no ambiente político durante a campanha presidencial de 2018: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. É um trecho de um debate entre Jesus e os religiosos de sua época, no pátio do templo de Jerusalém. O então candidato Jair Bolsonaro usou o versículo em praticamente todas as entrevistas que concedeu ao longo da campanha bem como depois de eleito, em geral quando compartilhava versões diferentes de fatos divulgados pela mídia tradicional. Embora um versículo da Bíblia constituísse claramente um aceno aos muitos evangélicos e conservadores que formaram sua base eleitoral, o uso que Bolsonaro faz desse texto não é religioso. Nele, o político está se apresentando como porta-voz da verdadeira verdade, da única versão digna de credibilidade. Em setembro de 2019, por exemplo, na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, diante de uma plateia de líderes internacionais, o presidente atacou, genericamente, “um ou outro país que embarcou nas mentiras da mídia” e criticou a imprensa “comprada” pelos “presidentes socialistas” que o antecederam, os jornais que “mentirosamente” noticiavam queimadas na Amazônia, a “ideologia” que teria se instalado “no terreno da cultura, da educação e da mídia, dominando meios de comunicação, universidades e escolas” no Brasil. E, depois de todos os ataques, nos segundos finais de seu discurso, arrematou com o já famoso versículo bíblico: “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. É o mesmo uso que já havia feito durante fala em uma sessão plenária do Congresso brasileiro em maio de 2016. Na época, Bolsonaro sofria uma ameaça de cassação de seu mandato como deputado federal. Ele havia dedicado seu voto de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o primeiro militar brasileiro condenado como torturador. Dilma foi torturada nos primeiros anos da década de 1970 e conta ter sido ameaçada de morte pelo coronel. Em 2016, Bolsonaro votou em favor do impeachment da petista “pela memória do coronel Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. A seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil considerou aquilo “apologia à tortura” e anunciou que encaminharia ao Supremo Tribunal Federal um pedido de cassação de seu mandato. Houve manifestações tanto de repúdio quanto de apoio ao deputado, então ligado ao Partido Social Cristão (PSC). Alguns dias depois, em fala na Câmara, Bolsonaro citaria o versículo: “Obviamente que a verdade é Jesus, é Cristo. [...] Tenho usado muito esta tribuna, e a minha munição é a verdade, o que incomoda muita gente. Quero, neste momento, agradecer a manifestação de apoio que tive em várias cidades do Brasil, em especial no Rio de Janeiro, onde mais de trezentos pessoas compareceram em meu condomínio apoiando as nossas verdades. A verdade nos libertará”.