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― Duzentos e oitenta e seis dias? Sério?!
O tec-tec dos dedos de Serena correndo pelo teclado cessaram.
― Algum problema, Mabel? ― da sua mesa, a secretária me olhou por cima dos óculos brancos, a testa franzida revelando sua preocupação. Os fios negros emolduravam seu rosto moreno.
E quem não estaria preocupada? Eu tinha acabado de falar sozinha…
― Ah, nenhum ― abanei a mão, as bochechas formigando.
― Tem certeza de que não quer mesmo que eu peça algo para almoçar? ― a secretária do meu pai insistiu. ― A reunião ainda pode demorar um pouco.
A essa altura, devia estar em casa, almoçando e assistindo a um episódio de Gilmore Girls , mas uma reunião de urgência com alguns fornecedores subiu na lista de prioridades do meu pai, me obrigando a gastar os bicos do meu All Star azul no piso recém-trocado.
― Tenho sim. Obrigada.
Sorri antes de voltar a atenção para o celular largado de qualquer jeito em cima da mochila. Um X vermelho marcava a caixinha “01 de janeiro de 2015”: o dia em que minha vida, finalmente, mudaria!
Bem, talvez as mudanças não acontecessem no primeiro dia, mas o importante era que o ano novo traria muitas novidades. Com o fim do ensino médio, deixaria Valadares para passar uma temporada nos Estados Unidos.
Só tinha um probleminha: 2015 estava tão longe!
Abri o navegador, em que me esperava um post sobre o relato de intercâmbio de uma blogueira. Eu o tinha lido havia poucos minutos, mas meu estômago estava tão oco que as palavras se misturaram como em uma sopa de letrinhas. Quando percebi, estava checando quantos dias faltavam para terminar o ano, embora ainda estivéssemos em março…
Ansiosa, eu?
Não devia ter mentido para Serena, mas não estava a fim de perder mais tempo esperando alguém entregar meu almoço. Só queria que meu pai me contasse de uma vez por todas o que tinha a dizer. Aliás, ele não podia ter feito isso em casa?
Desde a noite passada, quando ele havia convocado a reunião familiar de emergência, eu não conseguia dedicar mais que cinco minutos de atenção ao que quer que fosse.
Depois da escola, desci do ônibus e caminhei, inquieta, pela Avenida Atlântida. Não demorei a chegar ao prédio de tijolinhos vermelhos que ocupava as últimas quadras da rua sem saída. Era ali que meu pai comandava o único jornal da cidade, o Tritão.
Argh! Tinha perdido o foco de novo.
Rolei a página até o final do post. Se as frases eram um desafio grande demais para mim, talvez as fotos incríveis de Cecília Fontes pudessem ser uma boa distração. A Quinta Avenida, o Central Park e a Ponte do Brooklyn foram cenários perfeitos para seus registros.
Não resisti! Compartilhei algumas delas no meu Tumblr. Mal podia esperar para poder postar ali minhas próprias fotos.
Meu estômago roncou, um lembrete da cratera que se abria em minha barriga. Não dava mais para esperar.
― Serena, pode avisar ao meu pai que fui para casa? ― em um salto, me coloquei de pé. ― A reunião está demorando demais… Se ele quiser, posso voltar mais tarde.
Mal tinha terminado de falar quando a porta da sala de reuniões se abriu. Um grupo de homens engravatados deixou o ambiente.
O primeiro deles era Sebastião, o editor-chefe do jornal. Um homem baixinho, que apesar de mal ter chegado aos 30, já dava sinais de calvície. Pelo ego e o ar de superioridade que exalava, parecia comandar um desses noticiários gigantescos, não um jornal pequeno de uma cidadezinha na Costa Verde do Rio de Janeiro.
― Olá, Mabel ― ele me cumprimentou.
― Hoje não… ― resmunguei baixinho. O editor conferiu as horas em seu relógio de pulso vermelho; não contive um revirar de olhos. ― Ei, Sebastião. Tudo bem?
― Não podia estar melhor ― ele sorriu e ajustou os óculos que já estavam perfeitamente encaixados entre seus olhos esbugalhados. ― Veio assinar o contrato de estágio? Será um prazer mentorear a herdeira do Tritão.
Embora eu ainda não soubesse o que faria após o intercâmbio, tinha certeza de que o jornalismo não era minha praia. Se o jornal tivesse alguma coluna sobre música, quem sabe eu me sentisse um pouco mais atraída? Mas a seção de cultura e variedades era bem limitada.
― Ainda não ― desconversei.
― Poxa! ― ele levou as mãos ao coração. ― Desse jeito, vai deixar Valadares sem ter a oportunidade de conhecer a redação de um dos melhores jornais de pequeno porte do país.
Exagerado…