Capítulo de amostra
Quis escrever um livro chamado Férias de fornicação acerca de como a juventude privilegiada e rica de Lisboa estoura devassamente o dinheiro dos pais em férias delinquentes no litoral da província portuguesa do Alentejo. Fracassei. O máximo que consegui foi uma crônica com o mesmo título, a que abre esta coleção. Parte considerável dos textos que escrevo no Observador corresponde a fracassos semelhantes.
Se olhar dessa perspectiva, esta coleção de crônicas também é um cemitério dos livros que sonho escrever mas não sou capaz. Falta-me a capacidade de transformar um instinto numa tese consistente, um rasgo momentâneo numa obra completa, um pressentimento numa paixão consumada. Como chama o vilão do Apocalypto do Mel Gibson ao herói do filme, sou um “Quase”.
Também é disso que gosto nas crônicas. Podendo ser quases, elas vão embora antes do tempo, e têm impacto até quando não houve a oportunidade de lhes tirar as impressões digitais. Não estou a dizer que é isso que as minhas conseguem, mas é, sem dúvida, a isso que elas aspiram. Prefiro mil vezes deixar no ar uma ideia mal defendida do que iludir-me com a eficácia de convencer alguém.
Assumo que o fato de usar esta dicotomia, de pôr de um lado a provocação rápida e do outro a persuasão rigorosa, demonstra o trabalho diário que me ocupa além destas crônicas: sou um pastor evangélico. Como pastor evangélico tenho de, pelo menos, tentar aparentar que a persuasão rigorosa é o meu trabalho. Mas a verdade é que, quanto mais artigos escrevo, mais encontro um campo estranhamente comum aos meus sermões semanais. Vou tentar explicar.
Como pregador, sou um moralista profissional. Sou pago para mostrar moral, defender moral, incutir moral ao povo que me dá o salário. Tenho-me apercebido da imensa vantagem que daí vem. Afinal, moralizar é um instinto inato a qualquer pessoa e eu ganho dinheiro para fazer o que a maioria faz sem receber tostão. Por causa disso, aperfeiçoo-me profissionalmente onde a multidão é amadora.
Acresce o fato de, apesar de todos sermos moralistas, haver hoje a tendência dominante de o negarmos. Como passou a ficar mal assumir que se crê numa moral (como se uma pessoa, para não querer desperdiçar os recursos naturais do planeta, dissesse que ia passar a poupar o seu consumo de oxigênio), a arte de moralizar anda em negação, só a tornando mais onipresente e absurda. Nunca somos tão moralistas como quando o negamos.
Imaginem por isso o privilégio imenso que tenho de, sem qualquer remorso, escrever textos moralistas no maior jornal on-line português. Neles, pratico sem culpa o mesmo tipo de argumento que tantas vezes desenvolvo nos meus sermões. Há crônicas até que, na prática, são versões alternativas das minhas pregações. Sou um moralista remunerado no púlpito e posso ser um moralista remunerado na imprensa. Há vidas boas.